Como é que África chegou a este ponto?

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‘Comment l’Afrique en est arrivée là (Como é que África chegou a este ponto?) o novo livro de Axelle Kabou, ilumina com luz forte a problemática do lugar de África no mundo, colocada já há vinte anos no célebre ‘Et si l’Afrique refusait le développement?’ (E se África recusasse o desenvolvimento?)As perguntas de Boniface MongoMboussa suscitam aqui as respostas cruas e apaixonantes de Axelle Kabou.

Faz muita pesquisa para os seus livros, o que supõe bastante tempo para os escrever. Mas, mesmo assim, entre os seus dois ensaios distam dez anos, porquê?
Vinte anos, e não dez, separam os meus dois livros, e isto por uma meia dúzia de motivos fáceis de explicar: Acho que nos devemos calar quando não temos nada de importante a dizer.
Falando a sério, não senti que o meu primeiro livro estivesse obsoleto. Pelo contrário, pareceu-me que ele era de uma actualidade extraordinária, se bem que África viva, desde há alguns anos, o que se convencionou designar por « a sua grande transformação », por motivos económicos, de povoamento, de emigração e de imigração.
É evidente que a ideologia de dominação política que consistiu na recusa do desenvolvimento já não pode existir na sua forma original, quanto mais não seja porque os africanos estão hoje submersos por um fluxo de informações à escala planetária; estão fartos de ser explorados e sonham desde há muito em mudar de ares a qualquer preço. Já não é possível dirigir o ministério da cultura, da educação, do desenvolvimento social com base num negrismo obscuro que postula uma correspondência não demonstrada entre a cor da pele e os valores culturais, nem explicar que as crianças africanas têm necessidade de se enraizar na sua cultura ao mesmo tempo que se manda os próprios filhos estudar no estrangeiro, garantindo-lhes tachos chorudos. Mas é possível continuarmos a ignorar completa e impunemente o destino da juventude africana. Ora, a juventude representa perto de metade da população do continente. Ben Ali, traído por alguns dos seus esbirros, acaba de o descobrir às suas custas.
Não sou nem intelectual nem escritora: a minha palavra não assenta numa trama conceptual, teórica, epistemológica, susceptível de ser validada ou invalidade com recurso a ferramentas científicas. Não tem por função propor uma visão fundada em observações científicas. Não tenho portanto a pretensão de produzir um discurso erudito sobre África. Nada justifica que eu tenha pressa de tomar a palavra. Feitas as contas, sou uma polemista capaz de se zangar, de escarnecer, e com uma grande capacidade de trabalho. Creio que entre a postura do erudito e a do ignorante há lugar para debates de qualidade, de alto nível, e de bom teor sobre o tema do « lugar de África no mundo », que me obceca. Mas esses debates são raros. Tento conseguir os meios financeiros e intelectuais que me permitam participar de forma convincente neste debate, e partilhar os meus conhecimentos e convicções. Esta questão, que para o erudito está estafada, é, para mim, com efeito, de uma actualidade incomparável.
Faço muita pesquisa para os meus livros, é verdade. Cada um deles exigiu literalmente de mim o regresso à escola.Leio muitíssimo. Devorei The Cambridge History of Africa e l’Histoire générale de l’Afrique editada pela Unesco. Por causa disso estraguei a vista. Creio possuir um espírito de síntese sólido e uma sólida formação de base. Tento avançar com a ajuda dessas ferramentas.
Assim, quando tentei ver o que diz a literatura corrente sobre a marginalização de África, tive à escolha relatórios de colóquios internacionais que veiculam um amontoado de clichés, obras académicas eriçadas de estatísticas e relatórios económicos internacionais do mesmo tipo, que consideram a colonização e as independências como pontos de partida pertinentes para compreender como África chegou a ocupar o seu lugar actual no quadro mundial e como deveria proceder para dele sair. Pareceu-me simplista e frustrante ver uma questão desta importância reduzida a duas ou três tendências e a duas ou três estatísticas. Tentei então constituir um « campo de investigação » mais vasto, mais diversificado, em suma, transdisciplinar.
Para falar da marginalização de África de maneira pertinente, de maneira sistemática, foi-me necessário olhar para fora da economia para compreender a economia (um pouco como Jacques Giri fez com a sua célebre história económica do Sahel mas sem a sua imensa cultura); mostrar que esta questão, monopolizada pelos economistas, foi tratada de modo muito aprofundado, ou pelo menos de modo mais convincente, por outras disciplinas. Para isso, tive de compreender o que dizem os historiadores da economia, os geógrafos, os demógrafos, os investigadores de ciências políticas, os linguistas, etc. e compreender de que modo as suas afirmações formam um sistema. Pude assim produzir um livro que é, ao mesmo tempo, muito completo e fácil de ler sobre esta questão: uma espécie de guia, de introdução. Em resumo, produzi o livro que gostaria de ter encontrado sobre a marginalização da África. Isso não se improvisa, acredite! Enfim, a escrita não é a minha prioridade. Não é a minha razão de viver. Não me dá de comer. É apenas um meio de participar num debate que me apaixona. Tenho uma família. Tenho de trabalhar para ganhar a vida, correr atrás de contratos cada vez mais raros e « garantir-me », como toda a gente.
No seu primeiro ensaio, Et si l’Afrique refusait le développement?, descrevia a África contemporânea. No seu livro Comment l’Afrique en est arrivée là, inscreve-se naquilo a que os historiadores da Escola dos Annales designam por longa duração. O que justifica essa mudança de estratégia?
A minha estratégia nasceu da necessidade de pôr as coisas em perspectiva, face a certas carências: de partir da duração muito longa passada para esclarecer o presente e talvez os futuros possíveis da África subsaariana: « O vento nunca é favorável para quem não sabe para onde vai » diz um adágio célebre, mas também não o é para quem não sabe como chegou ao ponto onde se encontra. África está bloqueada desde há muito na mesma figura de historicidade. Estamos condenados a não entender os processos pelos quais a África subsaariana chegou ao lugar onde se encontra hoje em dia no quadro mundial se nos contentarmos em partir da colonização e das independências:isso é uma fraude. Ora, essa é a abordagem mais corrente, para não dizer a abordagem dominante. Por ter participado em muitos debates da ONU consagrados a África e por ter dirigido e coordenado alguns deles, posso garantir-lhe que a África subsaariana é considerada, por muitos africanos cultos e pelas instituições encarregadas de reflectir na inserção das suas economias no mundo, como uma região quase desprovida de história económica e política. Quis mostrar que a África actual é herdeira de uma história económica, política e social que não nos podemos permitir ocultar apenas porque embaraça a consciência da humanidade.
Mais especificamente, esta mudança de estratégia parte do meu espanto face à tendência bem estabelecida, a diversos níveis, de considerar África, simultaneamente, como o primeiro ou o principal berço do processo de hominização e como uma região nascida da colonização, depois de ter sofrido « o tráfico »: parece-me redutor. África é uma velha senhora com muitos anos: não é apenas o continente onde, até nova ordem, o homem surgiu. É também o continente de onde o homem, inventando a prática da assistência técnica, partiu para difundir as pedras lascadas e machadinhas que encontramos tanto na Índia como na Inglaterra meridionais; é também o continente onde a arte de sobreviver deve ter sido inventada, numa época onde, por razões climáticas, a espécie humana quase desapareceu da superfície da terra. Finalmente, África, singularmente a África sudanesa e ao sul do Sudão, separada dos outros blocos tropicais, teve de inventar os seus sistemas de produção alimentar de modo totalmente autónomo, contrariamente ao que se passou noutros lugares. Isto tem um preço na corrida pelo domínio mundial. Os africanos conseguiram criar sistemas de produção alimentar em ambientes pouco propícios ao florescimento de comunidades agrícolas e sobreviver, apesar de tudo.
Para quem considera, como Braudel, que as nossas civilizações actuais estão, pelas suas bases, mais próximas do Neolítico do que geralmente se julga, há aqui matéria para reflexão. Porque é que nós, os africanos, permanecemos mais prontos a colher do que a produzir?
Não podemos continuar a reflectir sobre as economias africanas ocultando as seis grandes fases da sua história, ignorando a história das parcerias que as camadas dominantes das sociedades africanas fizeram com o exterior para alcançar e manter o poder.
Contraímos hábitos, reflexos, e tiques que são difíceis de perder e que nos obstinamos a atribuir à colonização e às independências Para termos hipótese de compreender, não o que se deveria fazer, mas antes o que deveria acontecer em África para que o continente possa mudar de papel e de posicionamento no mundo, é imperativo sair rapidamente destes discursos tenebrosos que partem, não se sabe como, do primeiro homem africano, até ao tráfico-à-colonizaçãoao-neocolonialismo, passando por grandes impérios medievais edénicos.
É preciso devolver às nossas economias as suas raízes históricas, e compreender que os tráficos negreiros, e não o tráfico negreiro, os crimes da economia colonial e pós-colonial, constituem, mais do que o mergulho actual das nossas economias nas trevas da mundialização (Bayart), a seiva e as fibras de que se tece a nossa história contemporânea, e que o afundamento de segmentos inteiros das nossas economias no subterrâneo (Mbembé) é uma antiga prática aperfeiçoada pelas populações africanas para escapar à arbitrariedade de Estados africanos repulsivos e predadores.
É tempo de reconhecer os legados destas sequências históricas, pois são muitos e prementes. Não se sai impunemente de mil anos de tráficos negreiros diversos que puseram a meio gás sistemas de produção e de inovação mais que rudimentares à partida. É urgente dizer alto e bom som que os tráficos negreiros são antes de mais histórias de parcerias comerciais e políticas entre empresários políticos negros, brancos e mestiços, e que o comércio « lícito » que sucedeu à abolição dos tráficos negreiros para o exterior, bem como comércio colonial e pós-colonial são novas versões de antigas parcerias negreiras cujos efeitos continuam a ferir a história política, económica e social de África.
O legado da África negreira é colossal: África deve a esse comércio uma herança sobre a qual não se reflecte o suficiente. É o caso das suas elites políticas actuais (muitas vezes provenientes dos grupos que venderam Negros, caso dos Fang e dos Téké, dos Bobangui, dos Wolofs, dos crioulos e dos mestiços do litoral, portugueses ou não, etc., dos seus modos de povoamento violentos, das suas fronteiras pretensamente herdadas do colonialismo mas provenientes, na verdade, das guerras de captura de escravos e das migrações da época (Sortir de la grande nuit, A. Mbembé). África herdou dos tráficos negreiros muitas das suas guerras actuais, muitos dos seus grupos étnicos actuais e o problema da heterogeneidade das populações a governar. O seu papel de recicladora de armas ligeiras provenientes de conflitos europeus foi inaugurado pelo Bornou a seguir à batalha de Lepante e ganhou outra dimensão nos tráficos negreiros da África Central, no século XIX, depois das guerras napoleónicas. Deixem de nos apresentar a proliferação das armas em África como um problema novo. África deve aos tráficos negreiros e ao comércio « lícito » o seu gosto pronunciado pela economia de renda e de extracção em detrimento da produção, o seu repertório diplomático, político, comercial e religioso actual, a fraca institucionalização das regras de condução dos negócios e do governo, e o seu estilo de governação que se caracteriza pelo divórcio abissal entre governantes e governados, e que por sua vez se explica pela extrema autonomia dos primeiros face aos segundos.
Os « dirigentes » africanos, e isto é dramático, nunca precisaram do trabalho das suas populações para viver. Os milhares de dólares gerados sobretudo pelo comércio mundializado de diversas drogas protegem-nos dessa necessidade por séculos e garantem a perenidade da sucessão filial no poder: a crise actual reflecte plenamente a prolongada incapacidade histórica das sociedades africanas em segregar e multiplicar formas de organização social centradas na melhoria das condições de vida de um número crescente de indivíduos através do trabalho, e isto num contexto marcado por uma explosão sem precedentes de ambições de consumo: é inútil dizer que esta situação se mantém! O número terrível de 6 milhões de mortos dos conflitos na África oriental (Carnages, Pierre Péan) corre o risco de ser em breve ultrapassado.
Em resumo, o meu novo livro dará aos leitores a possibilidade de ultrapassar o « tráfico » e a colonização para reflectir naquilo em que África se pode tornar tendo em conta a premência da sua história económica, e tudo isto sem estatisticas!
Este ensaio centra-se na história da marginalização de África e na do surgimento deste debate na cena internacional. Se lhe pedissem para traçar uma perspectiva (sei que é delicado), qual seria, em sua opinião, o lugar de África no mundo daqui, digamos, a vinte anos?
Primeiro, por ter tido o privilégio de traçar algumas perspectivas numa equipa composta por africanos de alto nível e ter visto trabalhar especialistas com pergaminhos, abster-me-ia de elaborar cenários em cima do joelho: vinte cabeças valem mais do que uma para tentar ver ao longe. O lugar de África no mundo daqui a vinte anos dependerá simultaneamente da evolução do equilíbrio actual das relações norte-sul a favor das estrelas emergentes do Sul, tais como o Brasil, a China e a Índia, da capacidade das sociedades africanas para repartir, sem muitos pogroms, uma população com um crescimento « fulminante » pelo espaço africano, para segregar e multiplicar, por meio de negociações civilizadas, formas de organização social decididamente centradas na melhoria das condições de vida das pessoas através do trabalho, e para produzir mecanismos de repartição equitativa das riquezas nacionais ou regionais geradas pelo trabalho. Há demasiado desemprego nos nossos países, demasiados jovens que, para além da própria vida, não têm nada a perder, e demasiada precariedade entre os adultos: não é normal que 20% da população divida entre si 60% da imensa riqueza de Angola! A grande incógnita é saber o que poderia forçar os nossos « dirigentes » a utilizar, localmente, uma mão-deobra que já não podem, pela primeira vez na sua história, exportar para lá do Saara e do Atlântico. Ora esta questão ocupa um lugar central em qualquer reflexão prospectiva sobre o lugar de África no mundo.
Estes futuros, sabemo-lo, serão diferentes. Mas, em resumo, a síndroma do naufrágio em Gibraltar irá aumentando em África: parece que os africanos que tiverem deixado África daqui a vinte anos terão possibilidade de uma vida melhor para si e para os seus filhos Os que ficarem em África conhecerão os pogroms, os genocídios e a precariedade perpétua, se não se fizer nada daqui até lá para tornar África política, económica e fisicamente habitável. Em resumo, é possível que o lugar de África no mundo daqui a vinte anos seja mais o de africanos que tenham conseguido inserir-se harmoniosamente no mundo do que o de uma África que tenha erradicado com êxito os seus problemas internos para mudar de papel e de posicionamento no mundo. Com dois mil milhões de habitantes até 2050, a reflexão prospectiva sobre África deverá ser mais audaciosa que noutros pontos, mais inclinada a identificar verdadeiras rupturas sistémicas:deverá desconfiar tanto do optimismo mercantil, dos futuros vistos através de lentes cor-de-rosa, e do « demografismo » comercial ambiente, como do pessimismo instalado. A prospectiva aplicada a África é muito norma cada a África é muito normativa para o meo gusto e passa geralmente ao lado de acontecimentos completamente previsiveis.
Sublinha que África falhou o seu relacionamento consigo própria, com o Mediterrâneo, o Médio Oriente e a Europa. Será que é muito tarde para reinvestir nesta história falhada, para reler, por exemplo, a escravatura, com reservas?
Nunca é tarde demais para tentar tirar lições do seu passado, para olhar o passado de frente. Os africanos não são os únicos a sofrer a tentação da inocência, do olvido, da amnésia. Basta ver o que se passa actualmente em França para nos apercebermos disso. Os historiadores, os investigadores de ciências políticas, africanos e não africanos, têm pela frente um enorme trabalho de divulgação. E essa é uma tarefa exaltante. África não está em paz com a sua história. Para ser útil, deverá renunciar a escrever numa linguagem erudita ou a fazer uma história militante. Os tráficos negreiros, que não pretendo canonizar, foram um formidável laboratório económico, político e social em África. Está portanto fora de questão continuarmos a contentar-nos em instrumentalizá-los para sombrias histórias de reparações, de continuarmos a falar deles sob um ângulo unicamente dolorista.
Temos de aprender a retirar lições desta longuíssima história sem contudo termos ilusões: as sociedades não mudam as suas formas de organização, os seus modos de consumo, a sua relação com o conhecimento e a orientação destas actividades por terem conseguido tirar lições do seu passado, mas sim porque conseguiram segregar, pelo conflito, a guerra, e outras formas viris de confrontação, outras formas de agir, trabalhar, acumular, produzir e repartir a riqueza; outras formas de perceber o seu lugar no mundo.
A escrita do seu primeiro ensaio era incisiva, a do segundo é mais analítica, mais elaborada e menos dinâmica: deu-se conta dessa mudança?
Não existe mudança propriamente dita, mas duas obras com dois géneros literários diferentes, movidas por diferentes energias, centradas no entanto na mesma problemática: a do lugar de África no mundo, abordada do ponto de vista de estratégias, escolhas, e opções históricas internas. O meu primeiro livro, Et si l’Afrique refusait le développement, é um panfleto, um grito de protesto, um murro numa mesa cujas gavetas estão cheias de desonestidade. Pode ser lido num só dia. O segundo, mais substancial, mais enriquecedor, diria eu, degusta-se, aprecia-se mais devagar. Comment l’Afrique en est arrivée làé, com efeito, um ensaio no sentido literal do termo: um esforço de exploração e de restituição.
Faz duas vezes o meu primeiro livro; parte do fim da pré-história até aos nossos dias, insiste em processos e não nessas unidades de estilos que são as mentalidades nem em máscaras ideológicas. Dá a palavra a especialistas de diversas disciplinas, tenta ligar as suas afirmações de forma sistemática -uma abordagem assim tem vantagens e inconvenientes. Neste caso particular, o leitor terá à sua disposição uma espécie de compilação de análises apresentadas numa linguagem simples e clara. A abordagem sistemática que adoptei para abordar esta questão presta-se mal ao tom incisivo e sarcástico do panfleto. Contudo, o leitor ganha em conhecimen o que perde em ocasiões de rir a bom rir. Vale a pena, acredite! Sai-se deston livro alertado, no sentido de aware (consciente, avisado)!
Este livro está dominado pela economia e pela história, não pensa que a literatura tenha o seu lugar neste tipo de ensaio?
Creio que este livro está mais dominado por uma abordagem sintética da história da economia de África do que pela economia. Põe em evidência problemas históricos; insiste em estratégias de abertura ao exterior que foram (e continuam a ser) postas em prática pelas camadas dominantes das sociedades africanas para tentar reprimilas a fim de alcançar ou manter o poder. Se bem entendo a sua pergunta, parece-me que este tema se presta às mil maravilhas à escrita de romances: a nossa história económica segregou diversos tipos sociais (guerreiros, senhores da guerra, bandidos, bandoleiros, aventureiros de todos os géneros) que têm uma envergadura romanesca evidente. Propuseram-nos Chaka ou Samory mas vejo com bons olhos romances sobre um Idriss Aloma, um Msiri, um Mirambo, Afonso lº, os chefes da casa de pirogas do delta do Níger, a horrível rainha Nziga ou a sua homóloga Ta Bompey da Serra Leoa. A história económica de África está cheia de personagens interessantes, acredite!
Ao lê-la sentimos uma cólera fria e um desejo de lucidez. De onde lhe vem esta força?
Sou guiada pela ideia de que os meus filhos poderão viver do seu trabalho numa África razoavelmente fraterna, grande, forte, digna e próspera. Creio que, no que me diz respeito, acabou. Ser africana é uma honra imensa, pelas razões que expus mais acima. Somos, como o resto da humanidade mas não mais do que o resto da humanidade, herdeiros desses verdadeiros pioneiros que, em África, inventaram nada mais nada menos do que a arte de sobreviver! Contudo, tenho problemas com a vida quotidiana nas três cidades africanas onde teria boas razões para viver. A vida é, aí, um verdadeiro percurso do combatente: não há água, nem luz, e estas duas « mercadorias » são simplesmente caríssimas e de má qualidade quando existem. Os electrodomésticos dos particulares são estragados, sem nenhuma compensação, pelas empresas que fornecem electricidade. Somos extorquidos em qualquer esquina. O acesso à cultura exige fortunas. Eu, sem electricidade, não posso trabalhar. Se todos os dias é preciso remendar o soalho da vida para conseguirmos estar de pé,… não se chega a velho! Não tenho feitio nenhum para mártir. Parece-me que fazemos mal em desejar o surgimento de Estados fortes em África: já espancam e matam bastante assim como estão. Precisamos de Estados atraentes, de glamour. Os nossos actuais Estados são, a bem dizer, repulsivos! Desde há muito que são incapazes de federar os africanos em torno de um sonho activo de prosperidade e de prosperidade partilhada. O que é inquietante, é o facto de os enormes rendimentos gerados pela mundialização dos tráficos mafiosos reforçarem a propensão histórica dos nossos dominantes para viverem das suas relações exteriores. A possibilidade de diversificação das parcerias exteriores é uma outra fonte de renda.
Essa gente está liberta, por toda a eternidade, da necessidade de viver do trabalho das suas populações. Os seus rendimentos cifram-se em milhares de milhões de euros! Recolhem sem mesmo terem de se baixar, enquanto lutam para que o seu país figure entre os países pobres fortemente endividados. Está a ver! Os africanos vão, por muito tempo ainda, poder morrer sem auxílio, graças aos seus « dirigentes » e graças à sua incapacidade de os obrigar a prestar-lhes contas! Ainda não saímos deste estado de coisas!
O que é que a alimenta, a guia? Tem autores de referência? Pareceme que há poucos intelectuais e elites africanas que beneficiem da sua estima.
Sou guiada pela minha força interior. Quanto ao resto, creio que os intelectuais africanos não precisam da minha estima: os que me toleram consideram-me a empregada de limpeza da literatura africana; uma intrusa, uma usurpadora, saída não se sabe de que buraco, ou simplesmente um objecto erótico colonial. Isso não me incomoda: muitos outros africanos, antes e depois de mim, pegaram na pena para dizer que algo não vai bem em África desde há muito tempo; que devemos olhar esse algo nos olhos, assumir a totalidade da nossa história, sem excepção, porque a responsabilidade é consubstancial ao homem e a culpabilidade um caso para os tribunais e o confessionário. Em África não se ouve este discurso de bom-grado. Mas a ideia vai fazendo tranquilamente o seu caminho, creio eu.
Fiquei comovida com a generosidade dos intelectuais senegaleses que levaram o meu primeiro livro às pias baptismais, em Dakar, embora alguns o tenham renegado mais tarde. No que diz respeito aos autores que me inspiram, confesso não ser muito de grupos. Leio muitos ensaios, revistas especializadas mas não romances, infelizmente. Tenho uma admiração sem limites pela verve de Césaire « o negro fundamental » que recomendava que nos decidíssemos a « ver com clareza e compreender perigosamente ». Os textos de Achille Mbembé e Jean-François Bayart ajudaram-me precisamente a discernir com mais clareza as minhas preocupações, apesar de por vezes os achar obscuros. No entanto, não sendo nem intelectual nem escritora, mas um ser humano caloroso, subscrevo inteiramente esta frase de Soni Labou Tansi: « Aos que procuram um autor comprometido, proponho um homem cativante ». Kapahacheu, etc. Homens cativantes, não conheço muitos na paisagem intelectual africana: Um ego demasiado grande, duas caras, poucos sentimentos, visão limitada, pouco sentido de humor!
Podemos saber os seus projectos de escrita?
Trabalho muito devagar, num projecto de pesquisa de que ainda não posso falar porque até agora estou na primeira fase: reunir documentação para constituir um objecto. Não tenho a certeza se posso ou quero escrever um terceiro livro. A escrita é um exercício muscular e monástico do qual não gosto muito. O processo é penoso.
Só me agrada o resultado! O tema que me interessa, contudo, é demasiado tentador para que lhe resista durante muito tempo.
Sou natural do Congo-Brazzaville. No seu ensaio, há passagens revigorantes sobre o antigo reino do Congo, precisamente sobre a relação com a Corte de Portugal, e o olhar que lança ao mimetismo da Corte do Congo não é glorioso. E podemos fazer um paralelismo (parece que o faz) entre esta atitude e aquilo que designamos pudicamente por Françáfrica? Poderia esclarecer-nos quanto a esse ponto?
A costa atlântica africana entrou na modernidade através do tráfico negreiro. Neste quadro, o Congo, mais do que os seus vizinhos e talvez mais do que o Ashanti, foi um formidável laboratório de mestiçagem, de criolidade, de extraversão, de formação do Estado, de utilização dos recursos gerados pelo comércio com o exterior para fins de diferenciação social (as camadas dominantes do Congo criaram o culto do luxo no vestir e da elegância para se distinguirem do comum). O Congo é um belo exemplo do progresso da economia pré-colonial em relação com os Portugueses seguido pela explosão da sua economia negreira. O que eu « censuro » ao Congo não é o seu mimetismo, mas ter feito os africanos pagar um preço humano muito elevado para passar nalguns séculos da circunscrição alargada ao reino, e depois do reino à… aldeia: que desperdício! O modelo de cooperação económica que foi instituído nas ex-colónias após as independências, com assistentes técnicos instalados em permanência, foi experimentado pela primeira vez, em plena era negreira, no Congo, e numa escala menor, no que diz respeito ao Saara central, no Bornou, onde os turcos serviram de assistentes técnicos militares. No entanto, este modelo de cooperação não se limita ao Congo. Toda a África Central, assente na cultura do milho e da mandioca, tentou, no século XIX, escapar à estreiteza das bases locais de acumulação económica graças ao tráfico negreiro: é o caso dos Lunda e dos Luba, dos Chokwe e de muitos outros povos da região. Todos fracassaram, todos foram submetidos pelos seus sistemas de dominação medrosos! Cortaram ramos demográficos nos quais poderiam ter assentado a sua prosperidade!

parceria Cultura (Angola)///Article N° : 11760

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